Decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 07 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha, entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006. Desde a sua publicação, a lei é considerada pela Organização das Nações Unidas como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. Além disso, segundo dados de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a Lei Maria da Penha contribuiu para uma diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro das residências das vítimas. Ela cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

No mês dedicado às mulheres, o juiz titular da Vara Criminal e da Infância e Juventude da Comarca de Três Pontas Dr. Enismar Kelley de Freitas comentou a Lei Maria da Penha. Na opinião do magistrado, ela é justa e veio fazer frente a uma realidade infeliz, independente de ser relação hetero-afetiva ou homoafetiva. Do ponto de vista jurídico, a lei dá à mulher a prerrogativa de se ver distante do agressor, de não se importunada. Um dos mecanismos é a medida protetiva.

ENTREVISTA
Dr. Enismar Kelley de Freitas
Juiz da Vara Criminal e da Infância e Juventude – Comarca de Três Pontas

 

A Comarca de Três Pontas tem grande demanda de processos de violência contra a mulher?

Temos sim uma demanda razoável. O volume é considerável, desde delitos ou contravenções menores até delitos mais graves. Uma simples vias de fato até um delito de homicídio. Temos uma quantidade muito significativa não só em Três Pontas, mas nas Comarcas do Estado como um todo. Isto é uma realidade. Existe infelizmente uma demanda muito grande.

Qual a sua opinião sobre a Lei Maria da Penha?

É uma lei justa, oportuna, que veio a fazer frente a uma realidade infeliz praticada contra a mulher no âmbito familiar e doméstico. É uma lei que eu imagino que com o passar do tempo, irá cumprir o papel de transformação da cultura, da realidade. Diria até do lugar simbólico dado a mulher e ao homem nas relações afetivas. Portanto é uma lei boa, que como toda as outras precisa de suas interpretações, ajustes, estruturações dos órgãos que são incumbidos de sua aplicação, mas é uma lei excepcional que talvez tenha demorado a ser editada. Também penso que se ela cumprir o seu papel de transformação da realidade social, transformação dos papéis simbólicos do homem e da mulher, talvez no futuro, o legislador possa pensar em rever a abrangência e aplicação da lei. Não porque é uma lei ruim, mas porque talvez a realidade já não recomende mais uma lei com tanta amplitude. Claro que isto é a partir de alguns anos ou décadas que ela seja bem aplicada para que isto seja repensado.

A Lei Maria da Penha trouxe inovações em defesa à mulher como a medida protetiva. Ela realmente funciona?

Sim. Do ponto de vista jurídico, ela dá à mulher uma prerrogativa de se ver distante do agressor, de não se importunada por ele e dá um título jurídico por meio desta decisão, que faz com que ela possa exigir das polícias, principalmente da Polícia Militar e dos outros órgãos do sistema de justiça, como é o próprio Ministério Público e o Poder Judiciário, um respeito a esta decisão. Então, uma vez tendo a medida protetiva, se o agressor não estiver cumprindo, ela [mulher] pode pedir que os agentes policiais afastem o agressor definitivamente ou até ele ser preso, por estar descumprindo esta medida. Enfim, ela tem efeitos práticos importantíssimos, em que pese a própria decisão por si só, não constitui uma proteção efetiva. Até porque o Estado não tem condições de estar presente o tempo todo ao lado da mulher para garantir efetivamente a proibição de manter contato, de aproximação, mas os órgãos de fiscalização estão cada vez mais se aparelhando para buscar dar efetivação prática a esta decisão, chamada de medida protetiva. Uma questão importante da medida protetiva é que ela é deferida basicamente com a declaração da vítima, da mulher. Trazer este status de palavra que deve ser ouvida, logo de imediato, sem outras provas, a não ser uma mera formalização por meio de representação ou de um boletim de ocorrências, dar este status já é um grave avanço.

A rapidez na expedição da medida protetiva é essencial para sua efetividade?

Sim, claro. A violência que ocorre no âmbito familiar, que se não for prontamente atendida ela pode resultar em outra violência mais grave ainda e não proteger a vítima. Então, as medidas protetivas precisam ser adotadas o quanto antes. E esta é a prática na Vara Criminal. Se recebe a representação da mulher na Delegacia de Polícia ou no Quartel da Polícia Militar, é prontamente encaminhada ao Ministério Público que emite o parecer. Se não, a medida é apreciada pelo juiz e de regra no mesmo dia sai o mandado de intimação ao agressor, mais tardar no dia seguinte, por causa do horário que ela chega. Mas a situações em que a vítima precisa ser atendida naquele momento.

Dr. Enysmar, além do afastamento do lar, existem outras medidas que o juiz pode determinar? Fale sobre elas.

A lei prevê, mais especificamente no artigo 22 que outras medidas podem ser estabelecidas. Prevê suspensão ou restrição de porte de arma, afastamento do lar; que é a medida mais conhecida e proibição de aproximação da ofendida, que pode ser de 50, 100, 200 metros; a proibição de manter contato por qualquer maneira, seja por telefone, pessoalmente ou por outras formas de contato; proibição de frequentar determinados lugares. Existem outras medidas de restrição ou suspensão de visitas, que obriga o agressor a prestar alimentos e outras que também são urgentes que são mais para acolhimento da vítima. No artigo 23 da Lei Maria da Penha, que é a Lei 11.343, fala que o juiz pode determinar o encaminhamento da vítima a programas dependentes ou comunitários de proteção, que pode também determinar a recondução da vítima à sua residência. Porque as vezes, o agressor toma posse do imóvel e não deixa ela voltar. Mas é preciso analisar caso a caso, oferecer outro tipo de atendimento à mulher para que ela possa ter uma necessidade mais imediata suprida. Claro que existe uma carência dos órgãos de proteção que envolve também o trabalho dos órgãos administrativos municipais que é uma questão que deve ser a princípio buscada nestas instituições administrativas. Do ponto de vista do judiciário, fazemos o encaminhamento da vítima quando necessário.

Quando um homem agride uma mulher, por exemplo, em uma briga de trânsito. Ele se enquadra na Lei Maria da Penha ou é apenas na relação marido-mulher?

A lei não fala da relação marido-mulher, ou esposo-esposa fala que configura violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer ação ou omissão baseada no gênero, ou seja, por ela ser mulher, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano moral ou patrimonial. Ai a lei especifica – no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto. Quer me parecer que uma briga de trânsito não se enquadre nesta situação. Ela não está no âmbito da unidade doméstica, nem da família e nem de qualquer relação íntima de afeto. No entanto pode ser que esta briga seja feita entre ex marido e ex mulher. Mas a princípio não me parece que uma briga de trânsito envolva a Lei Maria da Penha. Não é uma questão pura e simplesmente ligada a unidade doméstica. Mas isto depende caso a caso. A princípio diria que não me parece ser uma relação que possa ser aplicada a Lei Maria da Penha.

A mulher pode simular uma agressão para incriminar o marido, companheiro ou namorado. Isto o senhor enxerga como uma falha da lei?

Não vejo como uma falha da Lei Maria da Penha. Como eu já disse, ela criou a possibilidade de dar um crédito muito maior à declaração da vítima para deflagrar o procedimento da medida protetiva e até mesmo o procedimento criminal. Mas, como qualquer relação humana, as pessoas são sujeitas as suas paixões. Então existe um outro crime de denunciação caluniosa que todo aquele que sabendo que imputando falsamente uma pessoa, sabendo que aquilo é falso vai responder por um outro crime. A mulher evidentemente fica sujeita a este mesmo delito. Existem processos desta natureza aqui na Comarca. Mas eu não vejo como falha da lei. Acho que a lei teria que dar este status a palavra da mulher, que não é possível mudar esta cultura e a realidade social sem isto. Mas claro que pode ocorrer, não pode ser considerado defeito da lei propriamente, mas porque as pessoas são sujeitas as suas paixões.

Lei Maria da Penha pode ser aplicada em relações homoafetivas entre mulheres? E no caso de travestis e homossexuais?

A Lei Maria da Penha é feita para proteger a mulher. Não importa se é em uma relação hetero-afetiva ou homoafetiva. Desde que a vítima seja mulher, a Lei Maria da Penha vai ser aplicada a ela. Com relação a pessoas que não sejam do sexo masculino e por alguma outra razão possam se assemelhar ao sexo feminino, eu confesso que a situação é um pouco ainda intranquila do ponto de vista jurídico. Lembrando até que a poucos dias, o Supremo Tribunal Federal, disse que a mudança de sexo no seu registro civil é feito por escolha. Então, nós ainda podemos ver os desdobramentos desta decisão do Supremo, naqueles casos que os transgêneros, transexuais, com ou não cirurgias de sexualização venham requerer a alteração de sexo em seu registro de nascimento e se constar mulher, evidentemente a Lei Maria da Penha não fez nenhuma restrição, mulher biológica, mulher por declaração no registro civil, enfim. A Lei Maria da Penha fala de mulher. O nosso critério para ser mulher ou não é aquele que está inscrito no registro civil. São questões novas que ao longo do tempo serão pacificadas pelos juízos e tribunais esta interpretação.

Nos casos de violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha permite ao agressor o pagamento de fiança?

Ela permite sim. Nos crimes que cabem, o próprio delegado arbitra a fiança. A Lei Maria da Penha proibiu expressamente foram as medidas despenalizadoras da Lei do Juizado Especial. Ela proíbe, por exemplo, a transação penal, a suspensão condicional do processo, mas ela não vedou todos os benefícios. Alguns são possíveis como o pagamento de uma fiança.

Como que a mulher que depende financeiramente do agressor deve agir quando sofre violência doméstica e familiar?

Ela deve agir como uma mulher que não é dependente. Ela tem que buscar a sua proteção, nos órgãos que possam recebe-lá, como a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Ministério Público ou vindo diretamente ao Poder Judiciário, se caso algumas destas instituições não acolher a sua pretensão. A questão da dependência financeira e econômica é uma questão que não há uma solução tão pronta para isto. E essa é a grande dificuldade de proteger efetivamente a mulher. Porque as vezes ela acaba tolerando uma violência contra ela, jamais porque gosta da violência ou isto lhe dá prazer, mas porque ela se vê impossibilitada de buscar um novo caminho, uma vida própria. Especialmente na faixa populacional de pessoas mais carentes, a gente acaba tendo mulheres que acabam vivendo em situação de vulnerabilidade porque não tem para onde ir. Não porque tem qualquer apreço ou apego pela violência. Acho que com o passar dos anos a Lei Maria da Penha venha a contribuir com isso. Se a mulher não precisa do homem para bancar suas contas, evidente ela pode falar e escolher melhor sua vida e seu destino, que inclusive é não tolerar violência alguma contra ela.

A mulher pode pedir ao juiz que o agressor pague despesas da vítima ou uma pensão a ela?

Esta é uma possibilidade evidente. Isto não faz da mulher uma independência financeiramente. Mas a lei permite a fixação de uma pensão para estes casos em que ela estaria totalmente dependente deste homem. Mas quando eu falo de independência, eu estou pensando em uma mulher que não precisa nem de pensão do homem. Acho que esta é a melhor independência que a mulher pode ter. Que ela não tenha seu sustento provido pelo companheiro, mas sim, pelo próprio trabalho e suas próprias condições. Mas há situações emergentes que a lei permite expressamente a fixação de uma pensão.

A Lei Maria da Penha protege também as mulheres que sofrem violência mesmo depois do fim do relacionamento?

Mesmo depois do relacionamento. Não é porque o relacionamento acabou que cessa a aplicação da Lei Maria da Penha. Aliás, é justamente por isto, porque quando a mulher busca proteção, muitas vezes o que está em jogo é o fim da relação. E a violência decorre a partir daí. O homem em muitas ocasiões não aceitando o fim da relação, agride, persegue, humilha e ameaça a mulher. Então, se a Lei Maria da Penha não permitisse a proteção após o fim do relacionamento ela seria uma lei falha.