*Trespontano fala sobre os 32 anos de trabalho na Rede Globo de Televisão

Três Pontas é realmente uma excelente mãe. Daqui saíram muitos trespontanos para brilhar lá fora nos vários segmentos profissionais. Em um deles, provavelmente pouca gente saiba, apesar de acompanhar bem de perto. Todo mundo assiste televisão, mas não imagina que um trespontano é responsável por muitos cenários de programas e de dezenas de novelas que assistimos em casa, pela Rede Globo de Televisão.
Para quem não o conhece, apresentamos Keller Veiga, de 64 anos, que faz aniversário em 09 de março, filho do dentista Cipriano de Sousa e da professora de piano Lenice Veiga de Sousa. Formado em Arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, em 1981, fez o estudo primário na Escola Municipal Cônego Victor, tem boa parte de seus colegas em Três Pontas e, nas suas vindas à cidade, ainda encontra alguns deles. Na sua última visita para a Festa dos Corrêa, ele bateu papo com o
Correio Trespontano/Equipe Positiva, na redação do CT, contando um pouco da sua história e da vida corrida no Rio de Janeiro.
Carreira
Keller Veiga seguiu a tradição dos tios, primos e avós que têm um viés cultural e musical e começou sua vida artística na música, mas enquanto isso estudava arquitetura em Belo Horizonte. Saiu adolescente de sua cidade natal, em 1966, e foi morar na Capital Mineira. Depois de formado, foi se transferindo aos poucos para o Rio de Janeiro, onde se casou com Denise Stutz, fundadora do Grupo Corpo, com quem está até hoje e já são 40 anos de relacionamento. Denise é bailarina, e talvez seja este o segredo para viverem juntos uma vida de cumplicidade na arte.
No Rio, Keller compunha alguns cenários para peças amadoras e semiprofissionais. Através de amigos, como o “Bituca” Milton Nascimento, ficou conhecendo muita gente que trabalhava na Rede Globo e começou a tomar gosto pelo processo da cenografia, que ele achava curiosíssimo: fazer tudo em um curto espaço de tempo e montar e desmontar conforme a necessidade. A montagem-relâmpago da produção dos programas encanta Keller até hoje. Um belo dia, acabou na Globo como visitante. Lá ainda não havia a política de estágio, mas através do diretor Denis Carvalho ele conseguiu entrar em alguns estúdios e logo ficou amigo de outro diretor, Raul Travassos, que já não está mais na emissora, mas foi um de seus primeiros mestres. Keller tinha um escritório de arquitetura em Belo Horizonte com mais quatro amigos, mas já passava a semana no Rio, vivendo desde então uma vida bastante agitada. Em 1986, quando achava que seria contratado, as coisas não deram certo. Ele voltou para Minas Gerais, produziu um filme chamado “O Grande Mentecapto” e, ao terminar, estava meio que mergulhado no cinema, mas o seu destino já estava traçado.
Uma noite, na fila de um supermercado com a esposa, no Rio de Janeiro, encontrou uma assistente da Globo, que lhe disse que a emissora estava procurando por ele. Naquela época, não existia telefone celular e o contato era muito difícil. Tratava-se de um trabalho de cenografia em que o diretor de arte, Mário Monteiro, queria o Keller Veiga trabalhando com ele, numa novela das seis, há 32 anos. A relação do integrante da família Veiga com a televisão começou exatamente aí e perdura até hoje. Keller trabalhou muito tempo à base de contratos rápidos, como assistente de cenografia. Depois foi contratado como cenógrafo que prestava serviços temporários e, finalmente, Keller se transformou em funcionário, com carteira assinada, férias, etc. Hoje integra uma equipe de 30 cenógrafos e mais 120 assistentes. Segundo ele, não é tanta gente assim, como as pessoas imaginam, já que são muitos programas e uma programação intensa que envolve cenografia, dramaturgia, variedades e jornalismo diariamente. “Para a minha área, é um número de profissionais bastante objetivo e o trabalho é intenso para todo mundo”, revelou.
O funcionário da Globo explica que a performance de tudo não é difícil de entender. Cada programa tem um cenógrafo titular, que responde pelo resultado da cenografia, pela imagem que está indo para o ar, que envolve espaço e planejamento de interiores e decoração. Além dele, existem mais dois que respondem por uma equipe de cerca de 12 assistentes. Quando um cenógrafo vai assumir um trabalho, existem diversas e exaustivas reuniões sobre o conceito do programa, com autores, diretores, figurinos, caracterização, efeitos especiais e engenharia. O cenógrafo faz um projeto, apresenta a toda equipe e depois o desenvolve. Quando o programa entra em continuidade, ou seja, entra no ar, todos os cenários já estão prontos. Em caso de novela, a montagem começa a ser feita seis meses antes. Uma novela chega a ter 200 cenários, que se monta e desmonta de seis ou sete vezes todos os dias no estúdio. Normalmente, quando uma novela estreia, a cenografia já começa a produção da novela seguinte, que vai substituí-la. É neste intervalo que Keller geralmente tira férias, como está agora, e volta fazendo outro trabalho.
A preparação começa com montagem da equipe que vai fazer pesquisas e desenhos. Atualmente, ele é o cenógrafo da novela das sete, Deus Salve o Rei, que está desenvolvendo um processo diferenciado e se tornando referência para a própria Rede Globo. “Lidamos na arte com aquilo que é comum a todos. O cenógrafo trabalha com a composição e resolução de espaços. Gosto muito da cenografia por causa da sua agilidade. Pretendo daqui a pouco tempo sair um pouco da televisão. O próprio sistema já cria a alternativa de não termos que ficar tanto lá e ter um elo com gente nova no mercado”, afirmou.
Novela medieval usa processo de extensão cenográfica virtual 
Para cada programa ou novela existe uma forma ou perfil de produzi-lo. Cada um tem suas dificuldades e, de acordo com o cenógrafo, às vezes é mais difícil montar um programa atual e contemporâneo do que um programa ou novela de época. No caso dos programas de época há o processo de conseguir montar seu acervo de móveis e objetos de decoração, mas que às vezes não é tão complicado. Existem os fornecedores e a própria Globo já tem um grande acervo. No caso da novela das sete, Deus Salve o Rei, é preciso uma riqueza de detalhes enorme e o diferencial é que quase todos os exteriores estão sendo feitos digitalmente, com um conceito diferente da cidade cenográfica.
O facilitador é que esta novela está sendo pensada há cerca de dois anos e uma equipe inteira pode se reunir para trocar ideias de como tudo seria, cenografia, figurino e direção, o que simplificou e possibilitou que ela fosse gravada ‘indoor’, isto é, as cidades cenográficas foram construídas dentro de dois galpões, o que simplifica em parte o trabalho da equipe na questão de luz e do diretor de fotografia e dos efeitos visuais. Não existem problemas com as gravações em dias de chuva ou calor excessivo, e por isto as gravações rendem mais do que em outras novelas.
A grande novidade da novela Deus Salve o Rei é que foi utilizado um processo de extensão cenográfica virtual e criada uma enorme equipe que trabalha com efeitos de computação. A emissora já fez alguns programas usando esta tecnologia, mas nunca em uma novela ou programa mais longo. O teste foi feito em Saramandaia e na série Amor Te Amo, explica o cenógrafo.
Deus Salve o Rei demanda uma equipe de efeitos especiais de 30 pessoas, que trabalham nas máquinas renderizando 4 mil imagens captadas na Irlanda, Escócia e Espanha, inclusive com drones, durante dois meses. “Existem situações em que é preciso corrigir um por um. São 23 imagens por segundo que vão ao ar”, explica Keller. “Nenhuma imagem vai para o ar sem tratamento cromático. É feito um trabalho pelos coloristas. Eles pegam uma imagem da câmera, e por melhor que ela seja necessita de tratamento, possibilitando inclusive fazer correções de maquiagem. É um recurso legal e utilizado em praticamente todos os programas. Elas complementam e integram os cenários e serviram de referência para o material de acabamento utilizado nas construções dos cenários. E por incrível que pareça, em Deus Salve o Rei foram usados muito barro, material natural como casca de árvore e terra para que tudo chegasse a uma semelhança muito próxima da realidade. Foram construídos dois galpões, medindo 35m X 70m e 35m X 75m. No primeiro, foi montado o reino de Montemor, com castelo e cidade fictícia. No segundo, o reino de Artena e uma grande área de chroma para as cenas que envolvem efeitos visuais, floresta e as sequências de batalhas da trama. São cerca de 6 mil metros quadrados de lona translúcida que faz a cobertura dos galpões. Esta cobertura serve como um grande rebatedor de luz e dá o tom ideal para a identidade visual da novela. Cortinas pretas também fazem o controle da luminosidade”, explica o cenógrafo. “Inspirada na cidade de Pals, na Espanha, Montemor tem revestimentos de pedra e referências à força do minério e do metálico, além do castelo com pátio interno, uma vila composta por taberna, ferreiro e casas de alguns personagens. Já Artena é uma aldeia com uma construção mais simples e, ao mesmo tempo, mais exuberante e arborizada. Lá, além das casas de alguns personagens, estão as barracas de Amália (Marina Ruy Barbosa) e a loja de tecidos de Virgílio (Ricardo Pereira). A parte interna do castelo de Montemor, incluindo os quartos de Rodolfo (Johnny Mas-saro), Afonso (Romulo Estrela), rainha Crisélia (Rosamaria Murtinho), a sala de jantar, o salão com trono, entre outros espaços, foi reconstruída em um intenso trabalho da equipe após o incêndio no galpão de apoio às gravações da novela, em novembro. Além dos galpões, há gravações em estúdio, onde ficam os palácios e castelos, que sofrem mutação. No estúdio, que é um dos maiores e possui 34 metros, são gravadas as cenas do castelo: a antesala, a sala do trono e ambientes como os jardins. Isto tudo se transforma como em uma novela tradicional. A sala do Conselho de Montemor se transforma em biblioteca de Artena. Basta mudar o equipamento na colorização, a textura e a luz, que é mais azulada. Tudo isto faz parte de um conceito, de ideias que foram discutidas desde o início.
Esta novela envolve estas grandes propostas que a Globo sempre tentou ter. No Projac existem três módulos de gravação de dramaturgia, chamados MG’s. É nesta fase em que ninguém está investindo, a Globo está construindo o MG4, que é uma proposta de estúdios ainda muito maiores.
A proposta da novela foi audaciosa, surpreendeu muita gente e a relação afetuosa do diretor Fabrício Mamberti com toda a equipe faz com que tudo esteja dando certo. Ele conduz muito bem esta novela e tem uma bagagem de informação cultural muito grande. Toda novela tem orçamento padrão e, como todos os setores, ele precisa se encaixar nas possibilidades financeiras que a televisão oferece”, relatou Keller.
Sobre as produções que mais o encantaram, Keller destaca Pedacinho de Chão e Velho Chico, de Luiz Fernando, e o seriado Pé na Cova, de Miguel Falabella. “Ambos são gênios.” Sobre o que virá em 2018, ele disse que ainda não sabe, provavelmente um programa novo da grade da TV Globo. Geralmente, durante as férias,  em um hotelzinho lá na Bahia, descansando, recebe ligações dos diretores falando sobre seu próximo trabalho. E quando descobre o que vai fazer, já começa a pensar e sair atrás de referências à estética, horário, atendendo a estratégia da empresa, buscando uma linha que seja viável para conseguir audiência, mesmo porque a televisão vive e se mantém disso. Por isto ela está se tornando referência para a Es-panha e Japão.
Ao questionar sobre quando ele vai parar, Keller recrimina a ideia e diz que se sente como se estivesse começando agora. “A gente faz uma obra de arte para encantar as pessoas. A novela cria a simpatia e envolve todo mundo”.